Sim, fazemos mais puns enquanto voamos. Há até uma associação de vítimas da maior flatulência a bordo.
A menor pressão dentro dos aviões faz com que os gases no nosso intestino passem a exercer maior pressão, favorecendo a que naturalmente façamos mais puns. E há pessoas mais sensíveis ao tema. Estas, vítimas, se reuniram em uma associação internacional (IAVF) e elegeram há alguns anos um "deus", o Boeing 787 Dream Liner, por sua pressurização permitir maior pressão do ar na cabine e reduzir a tendência de soltarmos puns.
CRÔNICAS
No dia 18 de julho de 2010, o ainda quase desconhecido Boeing 787 Dreamliner pousou no aeroporto de Farnborough, apresentando-se no conceituado airshow da cidade localizada a sudoeste de Londres. Era a primeira aparição pública daquela aeronave tida como revolucionária. Havia um emotivo grupo de cidadãos a sua espera.
Sim, fãs da aviação, desejosos para conhecer aquele projeto ousado, mas o principal motivo de tanta gente se reunir em festa para o que podemos chamar de lançamento de um modelo novo de aeronave era outro.
Prossiga firme na leitura. Mais tarde saberá o motivo e garanto ser muito surpreendente!
Alguns atravessaram o mundo para aquele momento mágico de sua existência: queriam ver de perto o que parecia ser a sua oportunidade da redenção.
Eles fazem parte da International Association of Victims of Flatulence-IAVF, com sede na China.
Na China por se tratar de uma nação em que a dieta básica consiste de vegetais, preparados das mais distintas formas. E, claro, brócolis, couve-flor, repolho são também internacionalmente famosos por transformarem a vida sedentária e obscura da flora bacteriana no intestino em paraíso da microbiologia.
Essa flora intestinal oferece em retribuição à dieta rica em vegetais a produção de uma ampla gama de gases, a escolher, como metano, sulfeto de hidrogênio e o mais temido de todos, o fugaz, silencioso e quase letal gás sulfídrico, dentre outros.
Não está entendendo direito? Simples, esses são os gases que eliminamos quando fazemos pum!
Verdadeiro Xangrilá
A cidade de Xangai foi escolhida como sede mundial da Associação Internacional das Vítimas da Flatulência-IAVF também porque lá a eliminação pública desses gases não é considerada pecado. É comum o cidadão, em pleno recinto fechado, como elevadores e transportes públicos, por exemplo, não criar resistência a sua expansão dentro do intestino. Mesmo os mais ruidosos!
Como se nada fosse, para sua milenar cultura, seguem depois a doce rotina da vida, indiferentes ao rastro de destruição deixado para trás. Não precisam disfarçar como desgastadamente fazem os ocidentais como nós. As tentativas de dissimularmos os puns que escaparam são por vezes patéticas.
Os associados da Associação Internacional das Vítimas da Flatulência-IAVF sofrem de um mal constrangedor: a flatulência durante os voos. Num português mais coloquial, eles soltam muitos puns em suas viagens de avião. Bem mais do razoavelmente aceitável.
Chegam a ser discriminados em algumas nações. Há companhias que exigem o uso de um boton para serem identificados com maior facilidade pelos demais passageiros, como quem diz “se quiser reclamar é com eles e não conosco”.
Não é todo mundo que se sujeita, por exemplo, a sentar do seu lado dentro de um avião. E os que concordam invariavelmente exigem da companhia aérea compensações elevadas, como upgrade para a primeira classe ou redução de tarifas no voo seguinte.
Isso para não mencionar os mais radicais, que defendem que os classificados como membros da IAVF, ou potencialmente membros da associação, viajem em secções separadas dentro da aeronave, sem conexão com a ala dos que fazem pum apenas normalmente.
Mais pressão do ar, uma dádiva
A essa altura você deve estar se perguntando – e com razão - que diabos tem a ver a IAVF com o Boeing 787 Dreamliner?
Não é nem um pouco difícil entender o instante de júbilo dos seus membros na chegada da nova aeronave naquele histórico 18 de julho do Airshow de Farnborough: imagens mostraram pessoas em choro convulsivo, característica dos que conquistam algo há anos aguardado com extensa ansiedade.
Talvez por esse motivo a IAVF tenha sido uma das mais contumazes críticas ao atraso de mais de três anos na entrada em operação do Boeing 787. Seu primeiro voo comercial foi realizado somente no dia 26 de outubro de 2011, operado pela ANA, japonesa, no trecho entre Tóquio e Hong Kong.
Agora ficará claro para você a maior razão para as celebrações todas dos integrantes da IAVF: no Boeing 787 a pressurização permitirá uma diferença maior de pressão entre a existente dentro da aeronave e a externa.
Na maioria dos aviões atuais, até mesmo no Airbus A380, aquele de dois andares e em operação desde 2007, ao atingir a altura mais comum durante um voo de cruzeiro, 30 mil pés, cerca de 10 mil metros, a quantidade de ar admitida dentro da cabine de passageiros é a equivalente a 8 mil pés, algo como 2.600 metros.
Nem todos se dão conta de que, enquanto voam, estão em um ambiente semelhante a que se estivessem no topo de uma montanha com 2.600 metros de altura.
Prova dos nove
Você já deve ter recebido na bandeja de lanches distribuída a bordo um frasco de iogurte ou suco de laranja. E provavelmente viu que a tampa do frasco encontra-se inflada para fora, dilatada.
Se por acaso comprou um saquinho de batatas fritas antes de embarcar e não o abriu ainda, depois de meia hora de voo constatou que seu volume quase dobrou de tamanho, como se alguém tivesse assoprado ar para dentro.
Nos três casos, das embalagens de iogurte, suco de laranja e batatas fritas, o que aconteceu foi que elas devem ter sido fechadas em fábricas localizadas em cidades situadas abaixo da altitude em que todos a bordo experimentam agora, a tal da equivalente a 8 mil pés ou 2.600 metros.
A pressão dentro da embalagem aberta é a mesma do ambiente externo na linha de produção.
E há agora uma diferença de pressão do ar entre essa no instante de as embalagens serem fechadas e a existente quando o avião atinge seu nível inicial de cruzeiro. Na maioria das cidades – existem poucas indústrias localizadas acima de 2.600 metros de altura -, a pressão do ar é maior que a dentro das aeronaves pressurizadas a 2.600 metros.
Leis universais
As reações do corpo humano seguem os mesmos princípios de Física de toda matéria no Universo. Se o ar dentro das embalagens de iogurte, suco de laranja e de batatas fritas se expande porque a pressão externa diminuiu em relação à existente no momento de serem selados, os gases em nosso intestino obedecem rigorosamente a mesma regra.
É isso mesmo que você está pensando: naturalmente há uma maior tendência de todos a bordo fazerem mais pum durante o voo por causa de a pressão externa no ambiente diminuir, favorecendo a expansão dos gases dentro de nós!
Quando você puxa a aba da embalagem do iogurte o do suco de laranja para abrir com o voo já nivelado, tão logo a desloque um pouquinho o que acontece? Tchiuff! Espirra iogurte e suco para onde a abertura estiver apontada.
O mesmo ocorre com o nosso esfíncter anal, ele suporta a pressão interna dos gases no intestino até certo ponto. A partir daí, tchiuff também e salve-se quem puder!
Os folhetos explicativos distribuídos pela IAVF, principalmente em shows aéreos, para defesa eloquente da entidade, didaticamente explicam tudo isso em detalhes, utilizando-se até mesmo de desenhos, gráficos, declarações de professores de Física e médicos gastroenterologistas. O objetivo é obter maior compreensão de todos para o seu quase impossível desafio de fazer menos pum enquanto voam.
“Entenda, de uma vez, por que nós, mais sensíveis à questão, soltamos pum com maior frequência durante o voo!” é o título do folheto distribuído em Farnborough.
Presente dos deuses
E o que é que o Boeing 787 tem a ver com essa história esdrúxula de fazer mais ou menos pum, afinal?
Você vai entender melhor agora as manifestações carregadas de emoção dos membros da IAVF na Inglaterra: no Boeing 787, o material básico de sua construção, a fuselagem e as asas, é o compósito de fibra de carbono.
A porcentagem de materiais compósitos é bem maior que a empregada em todas as famílias da Airbus, 320, 321, 330 e 380. A exceção é a família do Airbus 350. O mesmo vale para a própria Boeing com as famílias do 737, 747 e 777. Esses materiais reúnem duas características extraordinárias para a engenharia aeronáutica: leveza e resistência.
A fuselagem confeccionada em fibra de carbono é mais tolerante à enorme diferença de pressão mencionada entre a interna e a externa da aeronave. Permite a admissão de maior concentração de ar dentro do avião, ou seja, o ar exerce maior pressão internamente que na maioria das demais aeronaves.
Enquanto em quase todas as aeronaves a pressão interna, durante o voo de cruzeiro, é equivalente a 2.600 metros de altitude, no Boeing 787 essa pressão é semelhante a que se você estivesse a somente 1.300 metros, metade da altitude e, por isso mesmo, como mencionado, mais ar é admitido para dentro da cabine.
Essa característica, além de permitir um voo bem mais confortável, garante maior vida útil à aeronave, decorrente do menor estresse da fuselagem.
Fica como está
Com uma pressurização mais amena, tanto os frascos de iogurte e suco de laranja, bem como o saquinho de batatas, quase não são modificados a bordo. A pressão a 1.300 metros não é tão menor da registrada no momento da fabricação a ponto de modificar as embalagens, diferentemente se submetidas à pressão de 2.600 metros.
O mesmo acontece dentro de nossos corpos. Os gases do intestino estão, a 1.300 metros, bem menos propensos a se expandir e procurar uma rota de fuga como acontece quando estamos a 2.600 metros. Isso mesmo, fazemos menos puns!
Os membros do IAVF estão em festa porque com essa maior pressão dentro do avião haverá uma tendência de eles serem menos vítimas da flatulência, a razão que os levou a se reunir na famosa e respeitada associação.
Com menos puns, serão menos discriminados, os demais passageiros sofrerão menos os efeitos profundamente indesejáveis da contaminação mal cheirosa dos gases intestinais.
”Isso faz uma grande diferença”, trataram de explicar os associados da IAVF na conferência de imprensa organizada em Farnborough.
O Boeing 787 ascendeu ao ponto mais elevado no altar da sala de cultos na sede da associação, em Xangai. Já o reverenciam. Tende a se transformar no deus da classe ainda pagã.
A família do Airbus A350, apresentada no dia 14 de junho de 2013, no Paris Air Show, no aeroporto de Le Bourget, introduziu a mesma tecnologia dos materiais compósitos empregada no Boeing 787 e, por isso mesmo, é da mesma forma reverenciada pela IAVF, mas ainda não ganhou imagens no altar da sua sede.
Experiência própria
Fui e voltei de São Paulo para Frankfurt, não faz muito, com a minha aeronave favorita, o Boeing 747-8, versão lançada em 2011 e produção descontinuada em 2023. Infelizmente. Mas compreensível, as novas e extraordinárias gerações de bimotores têm permitido às companhias aéreas resultados econômicos melhores, na maioria dos casos, em relação aos aviões de quatro motores.
Mas voltando ao insólito tema principal de nossa conversa, a questão de fazer mais puns durante os voos, já adianto que não sou diferente dos demais passageiros, ainda bem. Sim, fiz meus punzinhos durante as 11 horas de deslocamento.
Mas vale a pena ressaltar algo. Como estava no upper deck e mais primeiras fileiras da executiva do 747-8, bem mais distante das turbinas que os ocupantes do andar de baixo, o voo é bem mais silencioso.
É uma vantagem, concordo, mas esse conforto exige atenção redobrada, por embutir alguns perigos. Explico: quando os seus gases intestinais entram em ebulição, te sinalizam necessidade de abertura da via de fuga, é preciso ter certeza de que não será detectado. Não há o ruído das turbinas para te proteger, ao menos na mesma proporção de quem está logo abaixo.
Quando você menos imagina que não estão te ouvindo é um tal de vários passageiros te olharem com cara feia ao mesmo tempo.
Meu Deus, fui flagrado, você diz a si mesmo, enquanto inventa que caiu algo embaixo do banco e permanece abaixado, “à procura”, por longos minutos. E só retira depois o tapa-olhos após todos estarem já no segundo sono e as luzes da aeronave apagadas.
Outra técnica é você também olhar para o lado e transformar-se de réu em vítima. É possível interpretar ainda melhor essa canalhice, ao levar a mão na direção do nariz e movimentá-la, como se estivesse se abanando, enquanto mede de cima a baixo o cidadão próximo a você.
Essa saída cínica, para dizer o mínimo, exige, contudo, algum conhecimento prévio da índole, do histórico, de alguma informação pelo menos do passageiro ao lado a fim de evitar ser espancado em pleno voo. E com toda razão.
