O domínio do fogo, a ''descoberta'' da agricultura e o celular
Não faz muito, fui jantar com um grupo de jornalistas em Montreal. Fiquei impressionado com a postura da maioria: sentaram e se esqueceram do motivo de lá estarmos. Concentraram-se essencialmente nos seus celulares. Raras foram as ocasiões em que todos discutiram algo.
GERAL
Saí de lá um tanto desconcertado, não era assim. Cheguei no meu quarto de hotel, tomei banho, sentei na cama, coloquei o laptop sobre as pernas, como faço com regularidade, à noite, e redigi o texto abaixo.
O domínio do fogo, a “descoberta” da agricultura e o celular.
Controlar o fogo, entender que ao plantar sua semente o vegetal cresce e a dependência do celular pelo homem. Por mais desconexos que pareçam esses capítulos da história da humanidade, separados por grandes espaços de tempo, há uma relação de proximidade entre os três.
Entre os dois primeiros, de convergência comportamental. Cada um na sua época, foram decisivos para o desenvolvimento da sociedade e do próprio ser humano como entidade biológica. Você verá.
Já a utilização compulsória hoje do celular tem como consequência, nesse sentido social, efeito divergente, contrário ao que se seguiu às reuniões do homem primitivo ao redor das fogueiras, no fim do Paleolítico, há 400 mil anos. E depois quando deixou de ser um nômade caçador-coletor, há 10 mil anos, no Neolítico, para ter uma vida mais sedentária, ao começar a produzir trigo, cevada, milho e domesticar os animais.
É cada vez mais comum nos depararmos, não importa onde, com cidadãos mergulhados no mundo fascinante, dependente, viciante dos celulares.
Seus usuários redigem e recebem mensagens, leem as últimas notícias, conversam com profissionais de suas empresas, amigos, familiares, participam de reuniões, realizam e desfazem negócios, buscam orientação sobre a melhor rota para o deslocamento, contratam transporte, alguns fazem apostas, divertem-se com jogos eletrônicos e até aplicam golpes de estelionato, dentre outros usos do aparelho.
Mais recentemente, outra variável entrou em cena. E com potencial para ser muito mais contundente nos rumos de tudo que cerca a humanidade, como já foram o fogo, a agricultura e o celular: o avanço da inteligência artificial. Seus desdobramentos são tão abrangentes – e imprevisíveis - que vão merecer uma reflexão a parte.
Voltando à conversa sobre o celular, cada cidadão vive no seu universo particular, praticamente sem interagir com quem está do lado. As relações se estabelecem sempre com alguém ou algo distante.
“Que tal, filho, você e seus amiguinhos deixarem o celular um pouco de lado, dar um tempo com esses jogos, vocês estão aí há horas, e conversar um pouco?” Esse é um pedido relativamente comum, hoje. Como é hábito a resposta ser algo do tipo: “Como assim?”
E o pai compreender logo que para a lógica da geração do celular esse verbo “conversar” se restringe quase a trocar mensagens. Com uma linguagem cifrada, lógico, não no idioma escrito, com uso cada vez mais frequente de emojis, embaixadores de uma linguagem paralinguística destinada a revelar ações ou emoções facilmente identificáveis através de imagens caricaturadas.
Criatividade atrofiada
Não é mais preciso recorrer à riqueza do idioma, em especial o português, para descrever um sentimento de surpresa, apreensão, apoio, contestação, júbilo, tristeza, felicidade. Há, agora, pequenas figuras, os emojis, que resumem cada uma dessas emoções. Basta clicar neles para expressar o que antes deveria ser descrito por palavras. Viver está se resumindo quase que a escolher qual o kit mais indicado em um menu concebido para responder às perguntas ou mesmo aos desafios que surgem.
Esse novo conjunto de valores foi absorvido por parte importante da população, a ponto de alguns pais não mais se deixarem atingir quando dão uma bola de futebol para o filho e, atônitos, o veem virá-la para lá e para cá e indignado perguntar: “Ué, não estou entendendo, onde é que liga?”
Quem gosta de ler sobre antropologia, cultural e mesmo física, vive com esse dilema na cabeça: o ponto e contraponto entre uma e outra realidade.
O homem descobriu os imensos benefícios de controlar o fogo, como poder se aquecer, dispor de luz à noite, cozinhar os alimentos, o que o permitiu aproveitá-los melhor, absorver mais proteína, com desdobramentos no avanço do cérebro e na precisão dos movimentos dos dedos e das mãos, dentre outros.
Mais recentemente, pouco antes das primeiras civilizações surgirem, há seis mil anos, na Mesopotâmia e no Egito, o homem viu ser possível plantar partes dos vegetais, as sementes ou raízes, e mais tarde colhê-los.
A vida menos itinerante propiciada pela "descoberta" da agricultura teve importante efeito no desenvolvimento do mais poderoso instrumento de comunicação: a fala.
Nessa época também as relações afetivas estáveis começaram a ganhar força. Sim, estamos falando do conceito de família, agora mais valorizada. Ao se estabelecer nas áreas das plantações por meses, os laços sociais cresceram exponencialmente.
O homem passou a domesticar os animais, aprimorar as ferramentas que já fazia, desenvolver novas e entendeu que, vivendo em grupo, dividindo responsabilidades, sua qualidade de vida e as chances de sobreviver cresciam bastante. Haveria, finalmente, tempo para planejar e produzir um excedente de alimentos, utensílios, vestimentas etc.
Consciente disso tudo, é no mínimo estranho ir, hoje, a um restaurante e ver o que acontece antes ainda de muitos lerem o menu para pedir o prato ao garçom. Apesar de lá estar para comer, parece que a prioridade é verificar o que há na tela do celular que apenas há pouco deixaram de seguir. O garçom chega e ouve: “Não, ainda não escolhi”. Nem seria possível, pois o menu sequer foi aberto.
É grande a porcentagem de indivíduos que mantém uma relação simbiótica com o aparelho celular. Quanto mais jovem, maior a dependência, embora não seja lei.
O ser humano precisou de milhares de anos para descobrir os benefícios de viver em uma sociedade organizada, o quanto o controle do fogo e o advento da agricultura permitiram avançar também no desenvolvimento intelectual.
E agora, em somente duas décadas parece seguir o caminho de volta aos tempos em que o cidadão ao seu lado era apenas o cidadão ao seu lado. As interatividades são mínimas. Importa, mesmo, quem ou o que está do outro lado do aparelho.
É curioso também: quando os dois se veem frente a frente toda aquela festividade das mensagens cessa. Não se transfere para o momento em que fisicamente estão próximos. A humanidade tem hoje menos apego ao próximo, não importando a natureza da relação. E é cada vez mais evidente a sensação de que está revendo sua forma mais natural de se comunicar, o uso controlado das cordas vocais, a fala. Efetivamente nesses tempos modernos menos exigidas.
Caminho sem volta
É inegável que a telefonia celular e todos os seus apêndices introduziram melhorias substanciais na condição de vida dos habitantes do planeta. Em 6 mil anos de civilização, nunca o avanço da tecnologia, em todas as áreas, foi tão expressivo, lançando a humanidade em um novo universo, mesmo de valores. A extensão do choque de gerações entre a que não conhecia a realidade digital e a que já nasceu sob a sua égide não tem precedentes na trajetória dos homens.
Daqui para a frente a sua dependência a um aparelho capaz de trazer o mundo até onde ele está e redimensionar sua existência só tende a crescer. A cada dia cresce o que pode ser feito com o celular. Quem não dominar esse ciclo não sobrevive, ao menos profissionalmente.
Mas seria racional se o homem em vez de apenas viver intensamente o cosmos que o celular o lança também despertasse para certos valores que lhe são naturais e historicamente essenciais para a sua sobrevivência e evolução.
Em determinado sentido, o homem caminha hoje para trás na socialização que o controle do fogo e o surgimento da agricultura tanto o ajudaram a se desenvolver, ao ponto de, com o tempo, vir a dominar a tecnologia que deu origem a maior de todas as revoluções, a chegada implacável do universo digital.
